Era uma tarde em são Paulo. Tomei um metrô. Estava cheio. Segurei-me num balaústre sem problemas. Eu não tinha dificuldades de locomoção.
Comecei a fazer algo que me dá prazer : ler o rosto das pessoas
Os rostos são objetos oníricos: fazem sonhar. Muitas crônicas já foram escritas provocadas por um rosto- até mesmo o nosso- refletido no espelho.
Estava eu entregue a esse exercício literário quando, ao passar de um livro para outro, isto é, de um rosto para outro, defrontei-me com uma jovem assentada que estava fazendo comigo aquilo que eu estava fazendo com os outros.
Ela me olhava com um rosto calmo e não desviou o olhar quando os seus olhos se encontraram com os meus. Prova de que me achava bonito. Sorri para ela, ela sorriu para mim...
Logo o sonho sugeriu uma crônica: “Professor da Unicamp se encontra , num vagão de metrô, com uma jovem que seria o amor de sua vida ...”
Foi então que ela me fez um gesto amoroso: ela levantou e me ofereceu o seu lugar... Maldita delicadeza! O seu gesto amoroso me humilhou e perfurou o meu coração...
E eu não tive alternativas. Como rejeitar gesto tão delicado! Remoendo-me de raiva e sorrindo, assentei-me no lugar que ela deixara para mim. Sim, sim, ela me achara bonito. Tão bonito quanto o seu avô...
Aconteceu faz mais ou menos um mês. Era a festa de aniversário de minha nora. Muitos amigos, casais jovens, segundo minha maneira de avaliar a idade. Eu estava assentado numa cadeira num jardim, observando de longe.
Nesse momento chegou um jovem casal amigo. Quando a mulher jovem e bonita me viu, veio em minha direção para me cumprimentar. Fiz um gesto de levantar-me. Mas ela, delicadíssima, me disse :” Não, fique assentadinho ai...”
Se ela tivesse dito simplesmente “Não é preciso levantar” , eu não teria me perturbado. Mas o fio da navalha estava precisamente na palavra “assentadinho”. Se eu fosse moço,ela não teria dito “assentadinho”.
Foi justamente essa palavra que me obrigou a levantar para provar que eu era ainda capaz de levanta-me e assentar-me. Fiquei com dó dela porque eu, no meio de uma risada, disse-lhe que ela acabava de me dar uma punhalada ...
Contei o acontecido para uma amiga, mais ou menos da minha idade. Ela me disse: “ Estou só esperando que alguém venha até mim e, com a mão em concha, bata na minha bochecha, dizendo :’ Mas que bonitinha...’ Acho que vou lhe dar um murro no nariz “...
Vem depois as grosserias a que nós os velhos, somos submetidos nas salas de espera dos aeroportos. Pra começar, não entendo porque “velho” é politicamente incorreto.
“Idoso” é palavra de fila de banco e fila de supermercado; “velho” , ao contrário, pertence ao universo da poesia.
Já imaginaram se o Hemingway tivesse dado ao seu livro clássico o nome de “O idoso e o mar” ? Já imaginaram um casal de cabelos brancos, o marido chamando a mulher de “minha idosa querida”?
Os alto- falantes nos aeroportos convocam as crianças,as gestantes, as pessoas com dificuldade de locomoção e a “melhor idade” ... Alguém acredita nisso? Os velhos não acreditam.
Então essa expressão “melhor idade” ... só pode ser gozação...
Texto de Rubem Alves
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